segunda-feira, 13 de maio de 2013

HUMBOLDT UM NATURALISTA NA AMÉRICA DO INÍCIO DO SÉCULO XIX

ISSN 1809-0362
1 4 6 | Candombá – Rev ista Virtua l, v . 1, n. 2 , p .1 4 6– 15 0 , jul – dez 2 0 05
RESENHA
UM NATURALISTA NA AMÉRICA DO INÍCIO DO SÉCULO XIX
Marcelo Oliveira de Faria*
* Mestre em Geografia pela Universidade de São Paulo. Professor do curso de Li cenci atura em Geografi a das Faculdades Jorge
Amado. E-mail: tchelinho@hotmail.com
GERARD, Helferich. O cosmos de Humboldt. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 392 p. ISBN: 8573026707.
Quando ingressei no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, em 1984, fui apresentado, logo no primeiro semestre, a algumas idéias de um
alemão do início do século XIX, chamado Alexander Von Humboldt, sobre o qual tive de apresentar um
seminário para a disciplina Teoria e Método da Geografia. Naquela época, início dos anos 80, havia, não apenas
na Faculdade de Geografia, mas em diversas outras escolas da USP, uma certa resistência a todo pensamento
que não conduzisse à democracia e à revitalização da vida política no país. Dessa forma, a obra deste pensador,
cientista, aventureiro, viajante passou por mim sem que me chamasse muito a atenção.
Mais tarde, já próximo à década de 90, quando comecei a trabalhar com Educação Ambiental –
especialmente fazendo excursões com alunos dos Ensinos Fundamental e Médio – os relatos dos viajantes
foram aos poucos me conquistando, sendo que foi através deles que comecei a me aproximar de um período
remoto de nosso continente. Fernando de Magalhães, Cabeza de Vaca, Rugendas, e uma lista grande de outros
viajantes foram ocupando minhas leituras. Cada um à sua maneira, cada qual com suas intenções. Foi assim,
procurando resistir ao julgamento fácil das intenções e maldades dos europeus, que me dediquei à leitura dos
relatos desses homens que por aqui estiveram.
Lembro-me, quando li “The voyage of the Beagle” – chamado Beagle na América do Sul na versão em
Português – de C. Darwin, que descobri que, além dos pensamentos revolucionários daquele pensador, ali havia
também um grande aventureiro. A leitura de Darwin me fez resgatar a obra de Humboldt, pois este era
considerado por aquele como um dos mais importantes pensadores de todos os tempos. Como não havia nada
publicado do pensamento de Humboldt, deixei passar. No ano passado, passeando por uma livraria de Salvador,
vi na prateleira, o livro O Cosmos de Humboldt, de Gerard Helferich. Este é o primeiro livro de Helferich, que
trabalhou em diversas editoras de renome internacional antes de elaborar o projeto desse livro, que é resultado
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de uma grande pesquisa em torno da vida e obra de Humboldt, e uma enorme viagem pela América Latina
visitada pelo pesquisador alemão.
O livro na estante conduziu-me ao resgate de duas referências, uma de ordem pessoal e outra
profissional. Do lado pessoal, o resgate de meu seminário e de uma paixão antiga: os relatos dos viajantes sobre
o Brasil e a América do Sul. De outro lado, as várias referências ao pensamento de Humboldt que, à exceção do
seminário, nunca mais tinham ocupado minhas preocupações.
Adquirido o livro, iniciei, na companhia de Humboldt e do médico e botânico francês Aimé Bonpland,
seu companheiro de aventura, uma viagem em, pelo menos, duas perspectivas: a primeira na descoberta de um
universo, ou seria – em período pré-globalização, universo(s)? – natural e social da América do Sul no início
do século XIX. A segunda, tão apaixonante quanto a primeira, nas formas de se produzir conhecimento
científico em um período em que as fronteiras entre as diversas áreas do conhecimento, e suas especialidades,
não estavam ainda consolidadas e permitiam outras formas de indagação e caminhos de compreens ão do
mundo. A junção dessas duas perspectivas faz da obra uma grande descoberta para a compreens ão da
construção das ciências naturais modernas, ao mesmo tempo em que adianta uma série de questões que serão
retomadas, ainda que metamorfoseadas, no fazer científico do século XXI.
Após uma introdução sobre Humboldt, menino alemão, tímido e recluso, filho de pais abastados, mas
criado com a mãe, devido à morte do pai, dá-se início à trajetória de um jovem curioso no mundo das ciências.
Botânica, Geologia, Zoologia, Geografia, Astronomia, Metalurgia são alguns campos em que o jovem
Humboldt se vê embrenhado. O sonho de viajar para mundos distantes é, segundo a obra, uma verdadeira
obsessão do cientista que, em 1799, parte para a América do Sul, financiado pela coroa Espanhola.
A viagem é bastante conturbada, não apenas por questões naturais – longas calmarias e tempestades que
se sucedem ao longo do caminho –, mas também por questões de saúde – condições ruins de higiene e pouco
conhecimento sobre alimentação adequada, o que gerava pestilências – além do conflito entre espanhóis e
ingleses, que representavam sempre um perigo de encontro para quem estava a bordo de embarcações.
A chegada na América foi bastante conturbada, visto que a epidemia, a bordo do navio, exigiu uma curta
quarentena para seus tripulantes, mas percebida como longa para quem estava embarcado há mais de um mês.
Começa então uma viagem de 9.600 quilômetros através da América do Sul e da América Central,
percorrendo de barco, a pé ou no lombo de mulas uma grande área dos Andes e do Amazonas, no que hoje
compreende os territórios de Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, México e Cuba.
Tudo isso carregando uma série de instrumentos de pesquisa, como bússolas, termômetros, barômetros,
telescópios, prensas para acomodação de plantas, lupas e todo um conjunto de ferramentas para observação,
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coleta e registro de informações científicas. Além disso, uma coleção de plantas e animais que, a cada parte do
percurso aumentava, levando à irritação alguns de seus parceiros temporários, que não compreendiam a
importância de tal empreitada.
O contato de Humboldt com a floresta tropical surtiu nele um fascínio enorme, mesmo diante de
mosquitos e de um calor quase insuportável para um europeu acostumado com o clima temperado de seu país.
No entanto, diferentemente de Wallace, que no final do século XIX diria que a floresta tropical não apresenta
grandes encantos, pois não teria a graça dos campos de trigo de sua terra natal, Humboldt ficou deslumbrado
com a diversidade de cores, formas, tamanhos, cheiros, etc. que a floresta apresentava.
É interessante verificar também a curiosidade, o respeito e a atenção de Humboldt com relação aos
conhecimentos dos povos da floresta com relação à sua biodiversidade. São diversos os momentos em que
Humboldt chama a atenção para os usos da floresta por parte de seus habitantes, e sempre o faz com grande
admiração.
Além de um deslumbramento com a fauna e flora, os rios, o clima e o relevo não podiam passar
despercebidos, uma vez que Humboldt foi um dos primeiros a correlacionar os fatores abióticos com o
desenvolvimento da vida nos diferentes lugares. Assim, as anotações eram feitas de forma bastante sistemática
e começava a se compor uma Biogeografia como um campo de investigação das ciências naturais.
Como a Astronomia e a Geologia também compunham as áreas de interesses de Humboldt, ele mal
dormia às noites, buscando, através da leitura dos astros, a localização exata em que se encontrava, a fim de
oferecer maior precisão às suas observações e sistematizações. Quanto à Geologia, a descrição das diferentes
superfícies e inclinações é uma constante ao longo de todos os lugares visitados.
Humboldt, apesar de jovem – cerca de trinta anos quando esteve nessa viagem – já possuía grande
conhecimento em diversas áreas da ciência e já era um nome respeitado em toda a Europa. Seus contatos com
os diversos cientistas permitiram, por exemplo, questionar teorias, como o netunismo, para explicação dos
fenômenos ligados à formação da crosta, especialmente quando esteve pelos Andes, diante de terremotos e
erupções vulcânicas que lá ocorreram quando da sua estada, ou mesmo relatadas pelos locais, os quais
chegavam a se cansar de responder tantas perguntas elaboradas pelo jovem cientista, perguntas essas que, para
quem não conhecia a dinâmica das placas, já representavam indícios importantes do relevo da Terra como um
produto em constante processo de reelaboração.
O contato com a natureza nem sempre foi agradável, sem que, no entanto, diminuísse o interesse de
Humboldt e Bonpland por suas aventuras e descobertas. Ao longo de milhares de quilômetros de rios, piranhas
e jacarés nem sempre foram grandes companhias, sendo que o pior acompanhante sempre foram os insetos. São
diversos os momentos em que Humboldt se queixa dessa companhia, que tornava por vezes, junto com o calor,
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a viagem insuportável, não apenas pelo incômodo, mas pelas feridas e febres geradas pelas picadas diuturnas
desses bichos.
A vida na margem não era mais tranqüila. Onças apareciam com freqüência, causando sempre
problemas de localização para acampamento. Em uma passagem do livro, o cachorro de Humboldt, um mastim,
do qual ele muito gostava, desaparece após uma noite acompanhada de perto por esses grandes felinos.
Nada parecia diminuir o interesse científico de Humboldt e Bonpland. Cada aventura ou dificuldade era
matéria de reflexão e aprendizado, que, posteriormente, seriam relatados para o mundo como conhecimento
acumulado de um outro Mundo.
Ao contrário de um certo preconceito que paira com relação aos homens das ciências naturais de
ignorarem ou darem pouca importância às questões sociais, Humboldt esteve sempre preocupado com os
contornos sociais dos diferentes cenários existentes nas áreas visitadas. Suas anotações mostram uma certa
admiração pelos homens livres das sociedades da floresta, mas em um sentido bastante diferente do Bom
Selvagem de Rousseau. Havia, por parte dele, uma admiração com relação à saúde e conhecimento desses
povos sobre seus meios, sem que isso o fizesse cair em lugares fáceis de considerá-los mais virtuosos ou
melhores que os europeus. Mesmo com relação ao canibalismo, houve, por parte desse pensador, uma
curiosidade científica. Com relação aos povos indígenas das missões, há vários comentários sobre o fato de
apresentarem corpos menos saudáveis que os dos homens da floresta, o que revelava a desagregação dos seres
cativos, ou mesmo os maus tratos. A tristeza e subordinação dos povos indígenas confinados nas missões foi
observada por Humboldt em diversos lugares, e comparada à independência e auto-determinação dos povos da
floresta.
Quanto às missões e aos tratos concedidos aos povos indígenas pelos missionários, Humboldt – um
republicano de origem protestante - revela, mais de uma vez, sua discordância e indignação, o que nem s empre
pode ser discutido, visto que sua missão era financiada pela coroa espanhola, que lhe oferecia grandes regalias
em diversos lugares.
No que se refere aos procedimentos científicos, a viagem de Humboldt parece dar razão a Thomas Kuhn
quando, em seu livro “A estrutura das revoluções científicas”, advoga a idéia de que a evolução da ciência deve
ser compreendida como processo histórico de constituição de idéias em disputa, e da consolidação de uma das
possibilidades como dominante que servirá como modelo para o desenvolvimento de cada uma das áreas do
conhecimento. Humboldt viveu em um momento de grande discussão em torno de questões dos diversos
campos naturais e suas pesquisas. Se suas contribuições não serviram para a consolidação de um novo
paradigma que reorientou a produção do conhecimento no século XIX nos mais diversos campos das ciências
naturais, serviram certamente para derrubar alguns preconceitos e hipóteses equivocadas acerca do
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funcionamento da natureza. Além disso, seu trabalho de coleta de dados foi um dos mais importantes do século
XIX para o desenvolvimento das ciências naturais.
Sua obra foi referência para diversos pensadores, inclusive da envergadura de Charles Darwin, que o
tinha em grande conta. O processo de investigação sistemática da natureza e a correlação entre a vida e o
ambiente abiótico foram grandes contribuições deste cientista aventureiro que ainda traz grande contribuição
para se pensar as ciências naturais, especialmente em um momento de grande especialização, em que se fala em
romper fronteiras do conhecimento.
O Cosmos de Humboldt traz até nós um grande personagem que foi, ao mesmo tempo, cientista e
aventureiro. A viagem em sua companhia pode ser feita no sentido de compreender os caminhos da ciência do
início do século XIX, ou de uma grande aventura em terras que, em certo sentido, ainda permanecem por ser
descobertas. Boa Leitura!

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